sábado, 22 de janeiro de 2011

A permanência de Rodrigo Kaverna



Goiás inaugura a fantasia musical de um Brasil antiquíssimo. A lembrança deste reino úmido, como no porão da casa de Cora Coralina, acorda-nos para o mito do paraíso terrestre em sonhos visto pelo poeta português Fernando Pessoa (1988-1935) e transcrito em vários poemas do seu livro “Mensagem”.

No final do segundo semestre letivo de 2010, a minha turma da disciplina de “Cultura Brasileira”, do curso de Publicidade e Propaganda, da Faculdade Araguaia,  pôde ritualizar o mito do Brasil como paraíso terrestre ao travar contato com o trabalho do músico Rodrigo Kaverna, que se encontra a frente de projetos musicais como os grupos Passarinhos do Cerrado e Ragga Rural. 

O ouro musical que Kaverna pretende encontrar agora que começa a se tornar ouro possível, com a heróica visão do país como potência mundial. A alegria que Kaverna permite conhecer por meio dos ritmos que produz, seja cantando ou tocando (em nossa sala de aula, ele usou um pandeiro), provém do mesmo e terno lugar que o abolicionista brasileiro Joaquim Nabuco (1849-1910) desenha no seguinte trecho da sua clássica autobiografia, intitulada “Minha Formação”:

“A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil. Ela espalhou por nossas vastas solidões uma grande suavidade; seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos.”

A permanência da escravidão liberta-nos da dominação do medo da morte. A riqueza cultural brasileira reside nesta alegria intensa usada como único recurso possível ao tempo passado na escravidão.


A QUESTÃO

A seguinte pergunta foi formulada aos alunos após a atividade com Rodrigo Kaverna:

"A energia que nosso ilustre convidado transmite faz parte das forças 'ocultas' que geram o país. Que tal essa energia?"

Publica-se abaixo trechos das respostas de três alunos da turma.


O porto seguro da arte

"A energia de nosso convidado é explícita, podendo ser notada no momento de sua chegada à sala de aula, ouvindo Rodrigo 'Kaverna', pude entender o quanto a vida pode nos dar rasteiras, o quanto o dia-a-dia pode nos maltratar, vi também que a vida de cada pessoa pode se transformar de uma hora pra outra, bastando apenas que o indivíduo queira estar e ser melhor, pensando mais em oferecer do que receber, fazendo da arte um porto seguro onde todos em volta possam se saborear com tamanha beleza. (...)  Mas o importante é que a arte que vi me deixou com sede de estudo, estudo de tudo e todas as artes, não quero ser apenas um coadjuvante, quero mostrar o que sei e o que ainda vou aprender por longos caminhos que ainda ei de passar." (Heber Alves da Silva) 

A união pela música 
"A palestra com Rodrigo Kaverna trouxe novamente a questão da música como forma de superação, e o gingado do povo brasileiro pra levar a vida de um jeito malandro.
 Como vimos durante o semestre, o povo brasileiro busca na música e na dança esquecer a opressão das classes 'dominantes', encontradas no topo da pirâmide, e das dificuldades que são comuns nas nossas vidas. (...) Pudemos observar a harmonia que a música do Karverna trouxe, e isso fez com que provássemos que a música nos une, já que dias atrás estivemos em 'guerra'.
Ou seja, a música na sua simplicidade conseguiu unir independente da raça, sexo, nacionalidade e outras diferenças.
A música sempre consegue não só uma sala com 30 alunos mais ou menos, mas consegue unir o país, e isso faz com que o Brasil seja reconhecido mundialmente pela música, e o carnaval. (Gabriela Ferreira do Nascimento) 


"Nunca pensei que me sentiria tão feliz em uma aula"

"Essa é a energia, a energia que faz o povo brasileiro transformar um problema sério em melodia, em música, o povo brasileiro é um povo trabalhador, mas mesmo assim se diverte muito, inclusive com seus problemas, mesmo com tantas limitações, ainda consegue cantar e ainda brincar com essa situação. A energia do Kaverna é ótima, faz você se sentir bem, sentir que você faz parte de um povo unido e com uma grande e linda cultura, um povo que é capaz de misturar vários ritmos e melodias e criar a sua própria música, um povo que criou muitos ritmos das cinzas do fracasso, do sofrimento, que é o caso da capoeira, que era considerada como luta e agora é um patrimônio cultural. (...) Nunca pensei que me sentiria tão feliz em uma aula, senti muito orgulho de ser Brasileira, não queria tivesse acabado tão rápido. A energia dele é tão positiva que até em um ambiente que nos últimos dias estava hostil fez todos dançarem e se divertirem. " (Lorraine Khetlyn da Silva Vieira)






sexta-feira, 4 de junho de 2010

O corpo aprende




A oficina "Mito e Comunicação", realizada durante o XII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste - Intercom Centro-Oeste 2010, acendeu a roda de saberes.


A renovação metodológica traz o mito brasileiro através da capoeira.


O medo do desconhecido fecunda o novo modo de vencer e ser vencido.


A questão apresentada aos oficinandos gerou respostas publicadas neste post.









A QUESTÃO

A capoeira não é uma luta. A metáfora da capoeira serve para a internet? Vamos juntar aquilo que escrevemos antes, mais o texto do professor, mais os rituais todos, para dizer algo que seja belo, porque a beleza evita as disputas.




AS RESPOSTAS


Metáforas da interação
A capoeira não é uma luta e sim um jogo. No ambiente virtual há um movimento de jogo, onde os colaboradores jogam o jogo da interação da produção de conteúdo. Nesse espaço, se não há movimentação, não há produção, como na capoeira. Não há capoeira “sozinho”.  A beleza disso tudo é esse movimento, esse esforço de construir uma unidade dinâmica e interativa em constante transformação, onde nenhum  ganha ou perde.
Teoricamente, esse é um espaço público que pode inserir a todos. Na internet, assim como na roda de capoeira, se vai ao centro, jogo não apenas para quem quer, mas para quem tem a oportunidade.
Neste sentido, beleza pode ser sinônimo de democracia.
Na internet o ato de se jogar na roda implica em responsabilidades de administração de imagens plurais. Essa multiplicidade faz com que os usuários sem características para a bem vivência na internet “saiam” da roda, onde o mito da democracia continua.

Carolina Goos
Natália Araújo
Larissa Lauffer
Enya Café
Adriano Venâncio
Wanessa Mereb





Poema e comunicação
A capoeira é uma maneira /meio de comunicação. Assim como a capoeira é um meio de comunicação de uma cultura, a internet também é utilizada para difundir a cultura. A internet enquanto meio de disseminação de culturas é capaz de revelar a beleza de cada um.

Como, ó meu Deus?
Como falar de comunicação sem falar de humanidade?
Como falar de humanidade sem falar de cultura?
Ó, veja só, a capoeira é um meio de comunicação de uma cultura, a cultura brasileira.
A internet também difunde essa tal cultura.
Cultura essa que se dissemina pela internet, que revela a beleza que cada cultura tem.
No final, a beleza só depende dos olhos de quem vê.

Juliana Sayumi Kobayashi
Elisa Costa Ferreira Rosa
Diego Genésio dos Santos
Marcella Rosa Pereira




As disputas não findaram




O mito nasce a partir de uma reza que por sua vez envolve uma crença. A democracia uma vez foi mito até que se estabelece  como ordem sócio-política. Entretanto, hoje desconhecemos o nosso futuro mas mantemos a esperança de encontrarmos um modelo que sustente as relações humanas. É possível que a democracia se apresente como verdade – no sentido de universalidade - ou se pense em uma nova forma de integração social. E, se almejamos a integração social, supõe-se que as disputas não findaram. Nesse ponto, a internet permite a potencialidade de imaginarmos um mundo possível, o qual tem todos os elementos para existir mas ainda não é tangível.











José Augusto Carvalho Neto
José de Jesus Rodrigues Carvalho
Ana Renata de Oliveira Fernandes
Melanie Gothe
Réulliner da Silva Rodrigues
Queila Carmo






Democratização em cheque
A internet surge como uma “ferramenta” democrática permitindo uma hibridização de culturas, costumes etc. Tomando a internet como uma geradora de arquétipos (incluindo a definição de arquétipos como imagens simbólicas, ou seja, a internet como um aglomerado de imagens simbólicas) podemos dizer que a internet é uma falsa democratizadora de culturas no sentido que não permite uma participação plena de todos os nichos da cultura.  A internet simula uma liberdade de expressão que não vai além da superfície e gera uma disputa por atenção. Torna quem está ali herói.

João Henrique Pacheco
Pedro Henrique Ribeiro
Mariana Moura
Karine do Prado
Pedro Ernesto Carneiro
Jaine Côrte de Souza






Agradeço aos oficinandos pela participação.


A oficina foi realizada no dia 29 de maio, nas dependências da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia - FACOMB da Universidade Federal de Goiás (UFG), durante o XII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro-Oeste - Intercom Centro-Oeste 2010.


Fotos: oficinanda Melanie Gothe


sexta-feira, 28 de maio de 2010

Ouvir a música do mundo[1]

Marcus Minuzzi[2]

O medo de amar navega... Vem de um outro espaço/tempo. A música é o arco definitivo a partir do qual o medo de amar se expressa.

Nietzsche define que a música comunica “o sofrimento e a contradição” do “Um primordial” a maneira de uma “cópia fiel”.

A música o mundo orienta. A comunicação na internet orienta-se por a música presente no mito maior da democracia moderna.

A democracia ascendeu como forma de organização social mítica, ou seja, como sonho positivo, que repercute a memória do mundo.

Poucas pessoas suportam ouvir a memória do mundo. A luta do bem contra o mal é contada através desta memória, o que põe o mundo a sonhar com a vitória do bem.

Jung chama esse processo de inconsciente coletivo. O inconsciente coletivo se forma de “imagens primordiais” desta luta do bem contra o mal, os chamados “arquétipos”.

“O arquétipo é, na realidade, uma tendência instintiva, tão marcada como o impulso das aves para fazer seu ninho (...). (...) Chamamos instintos aos impulsos fisiológicos percebidos pelos sentidos. Mas, ao mesmo tempo, estes instintos podem também manifestar-se como fantasias e revelar, muitas vezes, a sua presença apenas através de imagens simbólicas. São a estas manifestações que chamo arquétipos. A sua origem não é conhecida; e eles se repetem em qualquer época e em qualquer lugar do mundo –mesmo onde não é possível explicar a sua transmissão por descendência direta ou por fecundações cruzadas resultantes da migração.” (JUNG, 1980, p.69)

Dionísio reinou no Ocidente como arquétipo do gozo. Nietzsche define Dionísio como o “criador”, o artista máximo. A realidade de Dionísio é a “potência estética.

A internet aproxima culturas. A rede que renova o mundo é, do ponto de vista dos instintos que geram arquétipos, uma “potência estética”.

Jung fala do mito do herói.

“O mito universal do herói (...) refere-se sempre a um homem ou um homem-deus poderoso e possante que vence o mal, apresentado na forma de dragões, serpentes, monstros, demônios, etc. e que sempre livra seu povo da destruição e da morte. A narração ou recitação ritual de cerimônias e de textos sagrados e o culto da figura do herói, compreendendo danças, música, hinos, orações e sacrifícios, prendem a audiência num clima de emoções numinosas (como se fora um encantamento mágico), exaltando o indivíduo até sua identificação com o herói.” (Jung, 1980, p. 79)

A forma do herói pode ser abstrata. O novo formato do fantasma do mal é o aquecimento global. Contra ele deve ressurgir o mito salvador.

A internet orienta o surgimento de um novo mito. O costume que se forma de pertencimento a redes sociais significa, neste contexto, o modo dionisíaco, ou seja, criativo, de disputar identidades em um espaço não vinculado ao território.

A terra suporta o mundo antigo da civilização técnico-científica com maior resistência, então, se o suporte de um novo mito acolhedoramente for leve como o ar.

O corpo virtual da rede ascende, portanto, à condição de uma espécie de nau que, comportando um número ilimitado de passageiros, permita à ilusão humana sonhar um novo tempo.


Referências bibliográficas
JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1980.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia – ou Grécia e pessimismo. Editora Escala : São Paulo, 2006.


[1] Texto usado como recurso metodológico na oficina “Mito e Comunicação”,  realizada no dia 29/05/10, durante o XII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Centro Oeste – Intercom Centro Oeste 2010, Goiânia/GO.
[2] Jornalista, doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS/RS). Professor nos cursos de Comunicação Social da Faculdade Araguaia.

sábado, 15 de maio de 2010

A rede que renova o mundo
Marcus Minuzzi[1]

Resumo
A Teoria da Comunicação, especialmente a partir de suas matrizes sociológicas, conta com poucos avanços na tarefa de interpretar o papel da mídia. O presente artigo busca refletir sobre a nova feição da comunicação, incluídas as chamadas redes sociais, a partir do conceito de mito.

Palavras-chave: mito; comunicação; internet; redes sociais.

Introdução
O capitalismo cabe no planeta? Talvez não por muito tempo. O lento processo ativado pela revolução técnico-científica, de democratização da informação, parece chegar ao limiar de um novo patamar para o utópico desejo da comunicação total e sem ruídos. A rede mundial de computadores ascende à condição de “musa” do novo mundo que se deverá estar criando. A musa é tudo aquilo que inspira um desejo por amor sem fim.
A internet, por seu caráter revolucionário, de quebra de paradigma, conquista amores intensos. O artifício representado pela existência da rede orna o colo desta apaixonante “mulher”: o humano e destrutivo desejo de expansão territorial, carreado pelo impulso sexual, onde antes feria o palco real da ação humana, ou seja, a terra, antes que a natureza seja arrasada completamente, agora ativa o território virtual, logo imaterial, que tudo consegue suportar.
 A terra suporta o mundo antigo da civilização técnico-científica com maior resistência, então, se o suporte de um novo mito acolhedoramente for leve como o ar. O corpo virtual da rede ascende, portanto, à condição de uma espécie de nau que, comportando um número ilimitado de passageiros, permita à ilusão humana sonhar um novo tempo. O presente artigo, na esteira destas reflexões, buscará desenvolver a hipótese de que a internet representa a forma pela qual a utopia moderna expande-se enquanto mito.

Entre o medo do mundo
Edgar Morin (1997) nos fala de uma “vedetização” a que procede a cultura de massas, em meados do século passado. Nascem os astros (atores e atrizes cinematográficos; reis, rainhas, príncipes e princesas; campeões esportivos; presidentes) a que o pensador francês chama de “olimpianos”. Sabe-se que, na mitologia grega, Dionísio, divindade grega relacionada à embriaguez e à liberação sexual, era um deus do povo[2].
“Pouco inteligentes” são as massas. Freud, autor da afirmação acima, antecipa o problema das redes sociais. “A arte”, segundo ele, “oferece satisfações substitutivas para as mais antigas e mais profundamente sentidas renúncias culturais e, por esse motivo, ela serve, como nenhuma outra coisa, para reconciliar o homem com os sacrifícios que tem de fazer em benefício da civilização” (Freud, 1996, p. 23).
O paraíso perdido é o mito fundador da cultura ocidental. A serpente simboliza tais instintos, de que tanto fala Freud. Que redes de relacionamento formam-se neste momento? Os atos que as compõem canalizam o medo da solidão e do abandono. A troca no ciberespaço guarda um aspecto sexual inconsciente: uma orgia forma-se entre as culturas. A repressão dos instintos, no dizer de Freud, faz com que se conforme um depósito de vontades não satisfeitas que, no entanto, permanecem atuando. Freud diferencia um tipo mais antigo de repressão, que atinge a todos os indivíduos de uma determinada cultura e que volta a se manifestar em cada criança que nasce. Neste sentido, deve-se distinguir
entre privações que afetam a todos e privações que não afetam a todos, mas apenas a grupos, classes ou mesmo indivíduos isolados. As primeiras são as mais antigas; com as proibições que se estabeleceram, a civilização – quem sabe  há quantos milhares de anos? – começou a separar o homem de sua condição animal primordial. Para nossa surpresa, descobrimos que essas privações ainda são operantes e ainda constituem o âmago da hostilidade para com a civilização (grifo no original). Os desejos instituais que sob ela padecem nascem de novo com cada criança (...). Entre esses desejos encontram-se os do canibalismo, do incesto e da ânsia de matar (Freud, 1996, p. 20).

O anseio infinito pelo prazer orienta o processo civilizatório. A cultura, antes de qualquer coisa, reprime esta busca. A heroicização consiste em dotar um indivíduo do poder supremo de renúncia aos instintos. É o caso extremo do Cristo, que, conforme o relato bíblico, morreu por amor à humanidade. O ritual de sacrifício do herói transforma-se em uma tradição narrativa. No Ocidente, além da narração sobre o sacrifício crístico, desponta o poema épico da Ilíada e da Odisseia, de Homero.
            O retorno ao lar é o mito que se apresenta no poema de Homero (2000). O Odisseu leva vinte anos para regressar à casa depois de finda a Guerra de Tróia. A espera de sua esposa, Penélope, é acompanhada da corte de outros homens, que ambicionam tomar seu lugar de esposo.  Com um reino a ser defendido, Ulisses erra pelo Mar Mediterrâneo enquanto não descobre o caminho de volta. O mar representa o perigo. A nuvem de azar que atordoa Ulisses faz Penélope tecer um longo bordado em que deposita seu propósito de manter-se firme na espera.

Na universal e milenar tradição, o herói, redentor ou mártir, ou ainda redentor e mártir, fica sobre si, às vezes até a morte, a infelicidade e o sofrimento. Ele expia as faltas do outro, o pecado original de sua família, e apazigua, com seu sacrifício, a maldição ou a cólera do destino. A grande tradição precisa não só de castigo dos maus, mas do sacrifício dos inocentes, dos puros, dos generosos. O sacrifício é a morte ou uma longa vida de provações (Morin, 2002, p. 93).
           
No caso de Ulisses, o sacrifício não chega a ser a morte, mas a longa dor da espera. O mar que o Odisseu atravessa é cheio de fantasmas, como as sereias, que prometem o torpor da beleza feminina, que desvia o herói de seu curso. A filósofa brasileira Olgaria Matos (1989), com base em Adorno e Horkheimer, interpreta esta passagem da Odisseia como “mortificação dos instintos”: o herói resiste à beleza do canto das sereias amarrando-se ao mastro do navio.
O canto é um convite à entrega ao feminino. Tal entrega do homem ao mistério antropologicamente representa o alimento da recordação do mito. Como o leito de um rio, a espécie é o suporte do escoar de mitos. A destinação de qualquer mito aponta para o futuro. Homero canta com tal beleza a glória de seus antepassados que reserva-lhes um lugar no futuro.
            Olgaria Matos lembra que os marinheiros de Ulisses têm os ouvidos tapados com cera, como modo de impedir-lhes a audição do canto: se o ouvissem, se jogariam ao mar. Ulisses prende-se ao mastro porque não tapou seus próprios ouvidos. Assim, pode ouvir o canto com a garantia de que não se atirará ao encontro da morte. A técnica de renúncia parcial ao encanto, segundo Matos, deve ser lida como sublimação. “Ulisses (...) pode desfrutar do encanto porque transformou sua tentação em objeto meramente contemplativo, em arte, em espetáculo; e, quanto maior a tentação, mais fortemente faz com que seus homens o amarrem ao mastro” (Matos, 1989, p. 133).

O deus na rede
A rede social constituída pelo Orkut promove a possibilidade de todo indivíduo ter o meio necessário ao estrelato. A democracia produz este efeito. A vitória no Orkut está relacionada a uma aferição do número de contatos feitos entre um usuário e os demais membros da rede. O Twitter afere igualmente seus campeões.
            O fenômeno da mídia de massas conseguiu, a partir da segunda metade do século passado, formar um Olimpo humano, em substituição ao Olimpo sagrado. A polis grega, conforme Hannah Arendt (1997), nega a necessidade, ou aquilo que é propriamente do campo dos instintos (na acepção freudiana): a polis representa o átrio no qual os cidadãos farão a tentativa de se igualar aos deuses. Ou seja, a democracia grega antecipou o processo de ampliação do espaço público na sociedade capitalista. O modelo dos deuses alimentava o drama vivido na polis: a árdua tarefa de ornar o rito da convivência. O Olimpo se confundia com o real.
            Roberto DaMatta (2000),  ao teorizar sobre o trabalho do antropólogo, determina a diferença entre sociedade e cultura, comparando a realidade destes dois conceitos com a execução de uma peça teatral. O texto da peça, sempre fixo, representa a cultura. Os atores, o palco e os responsáveis pela montagem do espetáculo representam a sociedade.
 (...) É sempre bom usar (...) a comparação com o teatro para expressar claramente a diferenciação entre sociedade e cultura. Realmente, no teatro temos sempre um problema fundamental de ajustamento interpretativo entre um texto (grifo no original), digamos, Romeu e Julieta de Shakespeare, e um sistema de ações concretamente dados num dado local (o palco e o teatro). Ou seja, estão aqui colocados os ingredientes básicos do fenômeno social: temos valores e idéias que devem ser vistos e ouvidos (e não lidos) e o problema de  atualizá-los em um conjunto de ações dramáticas, práticas.  (...) Creio que o texto serve bem como uma metáfora da cultura, tal como estou apresentando aqui; ao passo que a sociedade é o plano representado pelo espetáculo teatral na sua prática dramática e cênica. Um não vive sem o outro, embora o texto possa sobreviver às várias interpretações do drama (DaMatta, 2000, p. 53).

O drama permanente do corpo e seu abandono – e essa é uma afirmação nossa – representa o texto básico que vem se encenando no mundo ocidental desde seus primórdios.
            Habermas (1984), ao escrever sobre a estruturação da esfera pública, faz notar o quanto o novo homem que surge na Europa a partir do século XVIII forma um modo de organização social cujo núcleo é o amor livre, no sentido de casamentos que se constituem sem obrigatoriedade de vínculo que não seja o amoroso (ou a chamada “comunhão por afeto”). A comunicação orna o rito da busca por esse casamento.
            A novidade representada pelas redes sociais efetivamente está no aumento do desejo pelo corpo amoroso. O poeta Carlos Drummond de Andrade assim escreve:
Olha, amor, o que fazes desses jovens
(ou velhos) debruçados na água mansa,
relendo a sempre-palavra das estórias
que nosso entendimento não alcança.

            O medo alimenta a procura por trocas naturalmente inviáveis. O corpo do deus é o mito. A razão não o decifra. A mulher artisticamente é conquistada. O maior corpo é o corpo livre amoroso, assim como o projetado pela esfera pública burguesa. Nietzsche acusa o limite de um dogmatismo platônico, em que se esconderia um muito grave erro  - “o mais duradouro e o mais perigoso de todos os erros cometidos até agora  (...), a saber, a invenção platônica do espírito puro e do bem em si” (Nietzsche, 2008, p. 18).
            A neurose, segundo Freud, corresponde a um “comportamento associal” de determinados indivíduos em reação à frustração do instinto, entre eles o instinto do incesto. A rua expandida representada pela internet auxilia na contenção da incestuosidade reprimida. O processo do mito é um processo de expansão. A população que ostenta perfis em redes sociais da internet gesticula, de modo inconsciente, no sentido de casar-se com o mito do próprio amor.

Considerações finais
O rito simboliza o mito. Com o medo de carregar o ascendente amor em nosso corpo, combatemos a possibilidade do mito. O rito de conviver com a diferença estimula a troca. A maior atração a unir diferenças é, não o amor, mas o sexo. O sexo, no entanto, alimenta também a força reprodutora que reparte o mundo em corporeidades autônomas.
O amor ativa a divisão dos doloridos dramas de cada indivíduo. A rede de indivíduos articulada pela antiga mídia os unia em torno de amores em comum (os olimpianos de Morin). Com a internet, cada indivíduo cogita, em tese, a possibilidade de o astro ser ele mesmo. O astro sobe rapidamente. O novo mito recebe o assédio através do corpo exposto na rede. Com a internet, o rito capaz de tornar o amor coletivo uma razão para o fim das desigualdades sociais é menos ilusório. O alimento ocidental da palavra se tornou farto e viçoso: a internet humaniza a difícil tarefa do convívio social através do contato ao mesmo tempo real e virtual, corporal e simbólico, próximo e distante.


Referências bibliográficas

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1997.
ANDRADE, Carlos Drummond. Antologia poética. São Paulo : Abril Cultural, 1982.
BRANDÃO, Junito S. Mitologia grega, vol. II. Petrópolis : Vozes, 2007.
DaMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro : Rocco, 1987.
FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão, vol. XXI. In: FREUD, Sigmund. Obras psicológicas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro : Imago, 1996, p. 15-63
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública – investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1984.
HOMERO. Odisseia. Rio de Janeiro : Cultrix, 2000.
MATOS, Olgaria. Masculino e feminino. Revista USP. São Paulo, p.  133-138, jun./jul./ago. 1989.
MORIN, Edgar. Cultura de massas no século XX: neurose. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro.  Porto Alegre : L&PM, 2008.


[1] Jornalista, doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISNOS). Professor no curso de Jornalismo da Faculdade Araguaia (Goiânia/GO).
[2]uma das características fundamentais de Dionisio, ‘deus do povo’, é sua universalidade social”. BRANDÃO, Junito S. Mitologia grega, vol. II. Petrópolis : Vozes, 2007.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

O Dionisíaco na Comunicação - ou O Mito da Razão Artística


Reproduz-se abaixo aulas ministradas às turmas de Políticas de Comunicação e Jornalismo e Opinião Pública do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Goiás, entre os dias 10 e 24 de agosto de 2009.
O Brasil somente será compreendido em seus processos político-institucionais se a classe intelectual compreender também o mito da razão artística. A razão artística prevê o termo inconsciente na equação. Um país escrito oficialmente em vocabulário greco-latino possui na sua conformação mítica um amálgama de vozes complementares que nos transforma, segundo a aspiração do antropólogo Darcy Ribeiro, naquilo que já se chamou de “Roma Escura”.


Roma é o início do Ocidente cristão e representa, na conformação mítica brasileira, o verbo, ou seja, a palavra. Para o Ocidente, a palavra antes de tudo consegue manifestar a verdade. A comunicação moderna, em sua utopia radical, acredita que os moradores da polis, ou seja, os cidadãos, se receberem a palavra, “estarão salvos”. Tudo o que é fora do espaço “sagrado” da palavra, na mídia, nós iremos chamar de, entre outros termos, dionisíaco.


Dionísio, na mitologia grega, era o deus da profanação e da insanidade. A melhor expressão no Brasil que Dionísio encontrou para si é nosso famoso Carnaval. A liberação dos sentidos que ocorre durante o Carnaval é uma fuga do espaço sagrado da palavra. A palavra tende à monotonia. Os conteúdos, na mídia, comumente interpretados como “lixo” (por exemplo: Big Brother Brasil, Pânico na TV, futebol, Domingão do Faustão, entre outros) cumprem a fundamentalíssima função de narcotizar o público de modo a que ele consiga sofrer a verdade, sempre expressa de modo verbal, sem dor. A corrupção brasileira na política representa uma manifestação nefasta desse mesmo princípio.


O problema está em nossas raízes culturais. Recentemente, uma reportagem do programa Fantástico, da Rede Globo, mostrava uma tribo indígena retomando um ritual sagrado que havia sido proibido pela religião Católica. Nesse ritual, de batismo de uma criança, os índios fazem a ingestão de um potente alucinógeno. Segundo a própria tribo, através deste ritual, fala-se com Deus. A vertente africana de composição do mito brasileiro, por sua vez, procura atingir o mesmo efeito de comunicação com o sagrado através da sua rica musicalidade.



A danação de Sísifo

A correria monótona do dia-a-dia representa Sísifo. Este mito também herdado da Grécia nos lembra a difícil arte de viver. A narrativa mítica reflete sempre tudo aquilo que se encontra “do outro lado” da realidade, ao que estaremos chamando de inconsciente coletivo. A danação de Sísifo pode ser interpretada como um processo de evolução ética. De acordo com esse mito, Sísifo era condenado a carregar uma pesada pedra até o alto de uma montanha. Lá chegando, a pedra se soltava e descia, obrigando Sísifo a repetir sua tarefa dia após dia, sem pausa alguma.


O mito, evidentemente, nos remente à vida do lado de cá, ou seja, o plano material da realidade. Antes da Revolução Industrial, a pedra a ser carregada diariamente estava na agricultura. Arar a terra sem descanso. O processo instaurado pela Revolução Burguesa de certo modo alivia o fardo. Quem conseguiu esta proeza foi Dionísio.




O alimento oculto

A Revolução Industrial só foi possível graças à arte. A arte é a essência de Dionísio. O mito dionisíaco prevê a quebra de poder. Na Grécia, Dionísio era evocado através do teatro e de rituais que tinham como grande força a liberação sexual. Esta liberação sexual, e somente ela, consegue reduzir o sofrimento inerente à condição humana. No caso da revolução científico-industrial, o Renascimento cumpriu o papel de promover uma espécie de “orgia” necessária ao desmonte da mentalidade medieval.


Mas, afinal, por que “orgia”? A resposta para esta pergunta somente funciona se pensarmos em termos metafóricos. A Igreja Católica não permitia a mistura de sua doutrina com influências advindas de fora da Europa. A cruz de Jesus Cristo representava um grande falo. É da natureza do falo e, portanto, do masculino, não permitir invasões de território, neste caso, o território representado pelo catolicismo. A arte, com sua despretensão quanto a expressar verdades, sejam elas científicas ou religiosas, consegue enganar “o falo guardião do templo”, que vai, sem que ele mesmo se dê conta, cedendo posições.


Pode parecer depravado aquilo que Dionísio faz. No entanto, não existe na natureza nenhum outro poder de transformação que, como a sexualidade, consiga regular o processo de evolução humana. Foi assim que, deixando-se invadir, como que na calada da noite, o catolicismo tolerou a idéia absolutamente revolucionária de que o homem não merece encontrar-se sob o jugo de Deus. O eixo de transformação para a Idade Moderna é justamente a noção de que Deus não pode subjugar seus filhos de modo a mantê-los na escravidão. Surgiu então a idéia de que é preciso explorar a própria natureza de modo a que ela, a natureza, conseguisse alimentar grandes quantidades de seres humanos através do progresso técnico-científico.


Hoje, temos por resultado desse processo uma massa de trabalhadores não livres, porém menos escravos. O Brasil conseguirá atingir o patamar civilizacional capaz de afirmar seus valores culturais? Os Estados Unidos conseguiram gerar um modelo de ser humano novo e recomendado ao mundo inteiro como modelo perfeito de felicidade. Infelizmente, o processo de aceleração do consumo impulsionado por Dionísio chega agora aos seus limites.

Na foto: desenho de Sílvia Goulart (O Rio de Janeiro Olimpo)