quarta-feira, 26 de agosto de 2009

O Dionisíaco na Comunicação - ou O Mito da Razão Artística


Reproduz-se abaixo aulas ministradas às turmas de Políticas de Comunicação e Jornalismo e Opinião Pública do curso de Jornalismo da Universidade Católica de Goiás, entre os dias 10 e 24 de agosto de 2009.
O Brasil somente será compreendido em seus processos político-institucionais se a classe intelectual compreender também o mito da razão artística. A razão artística prevê o termo inconsciente na equação. Um país escrito oficialmente em vocabulário greco-latino possui na sua conformação mítica um amálgama de vozes complementares que nos transforma, segundo a aspiração do antropólogo Darcy Ribeiro, naquilo que já se chamou de “Roma Escura”.


Roma é o início do Ocidente cristão e representa, na conformação mítica brasileira, o verbo, ou seja, a palavra. Para o Ocidente, a palavra antes de tudo consegue manifestar a verdade. A comunicação moderna, em sua utopia radical, acredita que os moradores da polis, ou seja, os cidadãos, se receberem a palavra, “estarão salvos”. Tudo o que é fora do espaço “sagrado” da palavra, na mídia, nós iremos chamar de, entre outros termos, dionisíaco.


Dionísio, na mitologia grega, era o deus da profanação e da insanidade. A melhor expressão no Brasil que Dionísio encontrou para si é nosso famoso Carnaval. A liberação dos sentidos que ocorre durante o Carnaval é uma fuga do espaço sagrado da palavra. A palavra tende à monotonia. Os conteúdos, na mídia, comumente interpretados como “lixo” (por exemplo: Big Brother Brasil, Pânico na TV, futebol, Domingão do Faustão, entre outros) cumprem a fundamentalíssima função de narcotizar o público de modo a que ele consiga sofrer a verdade, sempre expressa de modo verbal, sem dor. A corrupção brasileira na política representa uma manifestação nefasta desse mesmo princípio.


O problema está em nossas raízes culturais. Recentemente, uma reportagem do programa Fantástico, da Rede Globo, mostrava uma tribo indígena retomando um ritual sagrado que havia sido proibido pela religião Católica. Nesse ritual, de batismo de uma criança, os índios fazem a ingestão de um potente alucinógeno. Segundo a própria tribo, através deste ritual, fala-se com Deus. A vertente africana de composição do mito brasileiro, por sua vez, procura atingir o mesmo efeito de comunicação com o sagrado através da sua rica musicalidade.



A danação de Sísifo

A correria monótona do dia-a-dia representa Sísifo. Este mito também herdado da Grécia nos lembra a difícil arte de viver. A narrativa mítica reflete sempre tudo aquilo que se encontra “do outro lado” da realidade, ao que estaremos chamando de inconsciente coletivo. A danação de Sísifo pode ser interpretada como um processo de evolução ética. De acordo com esse mito, Sísifo era condenado a carregar uma pesada pedra até o alto de uma montanha. Lá chegando, a pedra se soltava e descia, obrigando Sísifo a repetir sua tarefa dia após dia, sem pausa alguma.


O mito, evidentemente, nos remente à vida do lado de cá, ou seja, o plano material da realidade. Antes da Revolução Industrial, a pedra a ser carregada diariamente estava na agricultura. Arar a terra sem descanso. O processo instaurado pela Revolução Burguesa de certo modo alivia o fardo. Quem conseguiu esta proeza foi Dionísio.




O alimento oculto

A Revolução Industrial só foi possível graças à arte. A arte é a essência de Dionísio. O mito dionisíaco prevê a quebra de poder. Na Grécia, Dionísio era evocado através do teatro e de rituais que tinham como grande força a liberação sexual. Esta liberação sexual, e somente ela, consegue reduzir o sofrimento inerente à condição humana. No caso da revolução científico-industrial, o Renascimento cumpriu o papel de promover uma espécie de “orgia” necessária ao desmonte da mentalidade medieval.


Mas, afinal, por que “orgia”? A resposta para esta pergunta somente funciona se pensarmos em termos metafóricos. A Igreja Católica não permitia a mistura de sua doutrina com influências advindas de fora da Europa. A cruz de Jesus Cristo representava um grande falo. É da natureza do falo e, portanto, do masculino, não permitir invasões de território, neste caso, o território representado pelo catolicismo. A arte, com sua despretensão quanto a expressar verdades, sejam elas científicas ou religiosas, consegue enganar “o falo guardião do templo”, que vai, sem que ele mesmo se dê conta, cedendo posições.


Pode parecer depravado aquilo que Dionísio faz. No entanto, não existe na natureza nenhum outro poder de transformação que, como a sexualidade, consiga regular o processo de evolução humana. Foi assim que, deixando-se invadir, como que na calada da noite, o catolicismo tolerou a idéia absolutamente revolucionária de que o homem não merece encontrar-se sob o jugo de Deus. O eixo de transformação para a Idade Moderna é justamente a noção de que Deus não pode subjugar seus filhos de modo a mantê-los na escravidão. Surgiu então a idéia de que é preciso explorar a própria natureza de modo a que ela, a natureza, conseguisse alimentar grandes quantidades de seres humanos através do progresso técnico-científico.


Hoje, temos por resultado desse processo uma massa de trabalhadores não livres, porém menos escravos. O Brasil conseguirá atingir o patamar civilizacional capaz de afirmar seus valores culturais? Os Estados Unidos conseguiram gerar um modelo de ser humano novo e recomendado ao mundo inteiro como modelo perfeito de felicidade. Infelizmente, o processo de aceleração do consumo impulsionado por Dionísio chega agora aos seus limites.

Na foto: desenho de Sílvia Goulart (O Rio de Janeiro Olimpo)